Por: Dr Drauzio Varella
Folha de São Paulo.
A questão dos médicos estrangeiros caiu na vala da
irracionalidade.
De um lado, as associações médicas cobrando a revalidação dos
diplomas obtidos no exterior; de outro, o governo que apresenta o programa como
a salvação da pátria.
No meio desse fogo cruzado, com estilhaços de corporativismo,
demagogia, esperteza política e agressividade contra os recém-chegados, estão
os usuários do SUS.
Acompanhe meu raciocínio, prezado leitor.
Assistência médica sem médicos é possível, mas inevitavelmente
precária. Localidades sem eles precisam tê-los, mesmo que não estejam bem
preparados. É melhor um médico com formação medíocre, mas boa vontade, do que
não ter nenhum ou contar com um daqueles que mal olha na cara dos pacientes.
Quando as associações que nos representam saem às ruas para exigir
que os estrangeiros prestem exame de revalidação, a meu ver cometem um erro
duplo.
Primeiro: lógico que o ideal seria contratarmos apenas os melhores
profissionais do mundo, como fazem americanos e europeus, mas quantos haveria
dispostos a trabalhar isolados, sem infraestrutura técnica, nas comunidades
mais excluídas do Brasil?
Segundo: quem disse que os brasileiros formados em tantas
faculdades abertas por pressão política e interesses puramente comerciais são
mais competentes? Até hoje não temos uma lei que os obrigue a prestar um exame
que reprove os despreparados, como faz a OAB.
O purismo de exigir para os estrangeiros uma prova que os nossos
não fazem não tem sentido no caso de contratações para vagas que não interessam
aos brasileiros.
Esse radicalismo ficou bem documentado nas manifestações de grupos
hostis à chegada dos cubanos, no Ceará. Se dar emprego para médicos
subcontratados por uma ditadura bizarra vai contra nossas leis, é problema da
Justiça do Trabalho; armar corredor polonês para chamá-los de escravos é
desrespeito ético e uma estupidez cavalar.
O que ganhamos com essas reações equivocadas? A antipatia da
população e a acusação de defendermos interesses corporativistas.
Agora, vejamos o lado do governo acuado pelas manifestações de rua
que clamavam por transporte público, educação e saúde.
Talvez por falta do que propor nas duas primeiras áreas, decidiu
atacar a da saúde. A população se queixa da falta de assistência médica? Vamos
contratar médicos estrangeiros, foi o melhor que conseguiram arquitetar.
Não é de hoje que os médicos se concentram nas cidades com mais
recursos. É antipatriótico? Por acaso, não agem assim engenheiros, advogados,
professores e milhões de outros profissionais?
Se o problema é antigo, por que não foi encaminhado há mais tempo?
Por uma razão simples: a área da saúde nunca foi prioritária nos últimos
governos. Você, leitor, lembra de alguma medida com impacto na saúde pública
adotada nos últimos anos? Uma só, que seja?
Insisto que sou a favor da contratação de médicos estrangeiros
para as áreas desassistidas, intervenção que chega com anos de atraso. Mas devo
reconhecer que a implementação apressada do programa Mais Médicos em resposta
ao clamor popular, acompanhada da esperteza de jogar o povo contra a classe
médica, é demagogia eleitoreira, em sua expressão mais rasa.
Apresentar-nos como mercenários que se recusam a atender os mais
necessitados, enquanto impedem que outros o façam, é vilipendiar os que recebem
salários aviltantes em hospitais públicos e centros de atendimentos em que tudo
falta, sucateados por interesses políticos e minados pela corrupção mais
deslavada.
A existência no serviço público de uma minoria de profissionais
desinteressados e irresponsáveis não pode manchar a reputação de tanta gente
dedicada. Não fosse o trabalho abnegado de médicos, enfermeiras, atendentes e
outros profissionais da saúde que carregam nas costas a responsabilidade de
atender os mais humildes, o SUS sequer teria saído do papel.
A saúde no Brasil é carente de financiamento e de métodos
administrativos modernos que lhe assegurem eficiência e continuidade.
Reformar esse mastodonte desgovernado, a um só tempo miserável e
perdulário, requer muito mais do que simplesmente importar médicos, é tarefa
para estadistas que enxerguem um pouco além das eleições do próximo ano